Lucas 16:1-14. Este é um dos trechos de mais difícil compreensão de toda a Bíblia. O fato de estar apenas no Evangelho de Lucas dificulta ainda mais, pois não há a possibilidade de comparação de nuances com outros evangelhos. Lucas, grego converso, não foi testemunha ocular dos ensinamentos de Cristo, mas investigou e relatou tudo quanto pode através dos relatos daqueles que efetivamente presenciaram (Cf. Lucas 1:1-4). Apesar de crermos na fidedignidade do relato de Lucas, não é heterodoxo considerar que a parábola traspasse pela cosmovisão greco-romana do evangelista acerca do instituto legal do major domus: figura bem definida que exercia o poder de fato sobre a Casa (não no sentido de edifício, mas no sentido Game of Thrones) do seu senhor.
Na parábola, um mordomo está prestes a ser demitido devido aos rumores de sua má administração. Temendo os dias difíceis que se aproximam, chama os devedores da Casa e dá-lhes generosos descontos, visando obviamente seu favor nos dias de dificuldade. O senhor da Casa se admira e elogia a astúcia de seu desonesto administrador. Como entender e aplicar tal parábola?
Primeiramente é necessário diferenciar PARÁBOLA de “linguagem simbólica”, tal como usada no Apocalipse, em que cada elemento representa algo de natureza diferente da literalidade. Não há a necessidade de uma “chave criptográfica” para decifrar a parábola. Ela é simples, cotidiana, ao menos para seu público imediato. É como se eu dissesse: “Luke Skywalker fez de tudo para salvar seu pai, mesmo ele sendo Darth Vader”. A lição está aí, sem enigmas.
Não menos importante é sempre considerar que toda parábola tem um público imediato antes de chegar a nós. Os elementos, a linguagem e a ênfase são preparados especificamente para este público. Cabe ao exegeta a difícil tarefa de perceber o que é acessório e conjuntural; bem como o que é essencial, perene e atemporal na parábola. Neste caso específico, o verso 14 revela que o público alvo da parábola foram os fariseus.
Outro ponto é a necessidade de entender que cada parábola traz uma lição bem específica. É um erro achar que uma única parábola aborde todos os pontos da teologia cristã. Por exemplo, a Parábola do Juiz Iníquo e a Viúva Persistente (cf. Lucas 18:1-8) revela um juiz “que não se importava com os homens”. Neste caso, é evidente que a parábola faz um paralelo entre a relação viúva-juiz e eu-Deus. Por óbvio, Deus não é um juiz iníquo, nem eu sou uma viúva e tampouco tenho inimigos. Não é esta a questão. O início da parábola já adverte o leitor sobre aonde ele deve fixar sua atenção: “E contou-lhes também uma parábola sobre o dever de orar sempre e nunca desfalecer.” O foco específico é a relação e as posições na relação: a soberania de Deus e a minha dependência de seu favor. O resto é acessório.
Na Parábola do Mordomo Infiel, o foco é a astúcia no uso dos recursos confiados, e não a desonestidade, como pode aparentar uma leitura rápida. Assim como no exemplo acima, o mordomo é infiel, mas não é a sua infidelidade que é elogiada, tampouco sua demissão revertida. Os adjetivos dos personagens são importantes para o enredo da parábola, mas não fazem parte da lição ética ensinada.
Parto do pressuposto que todos nós, de certa forma, somos mordomos infiéis (falo por mim); e, mesmo diante desta condição, Jesus aconselha e sintetiza a lição da parábola no verso 9: “Por isso, eu digo: Usem a riqueza deste mundo ímpio para ganhar amigos, de forma que, quando ela acabar, estes os recebam nas moradas eternas.”
O termo “moradas eternas” mostra que este “ganhar amigos” com os recursos deste mundo difere daquela amizade corrompida e interesseira, mas ordena que ganhemos amigos para a eternidade, ou seja, para Cristo. Há uma espécie de comissão evangélica aqui, através dos recursos confiados a nós. O ensino termina com uma mensagem de desapego ao dinheiro, o que faz todo sentido no contexto da parábola. Coincidentemente (ou não), a próxima parábola fala do rico que foi para o Hades e do mendigo que foi para o seio de Abraão.
por Willian Wheeler Erthal
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