Para ler neste feriado…

Nesta sexta feira da paixão eu me encontro em paz de espírito. Está sendo um dia de reflexão no sofrimento de Cristo. Um dos pensamentos que me ocorreram foi o de que as agonias e turbulências sofridas por Jesus é que possibilitam esses momentos de paz e esperança. A palavra lembrança nesse final de semana […]



21 de abril de 2011 Bibotalk Reflexões
Nesta sexta feira da paixão eu me encontro em paz de espírito. Está sendo um dia de reflexão no sofrimento de Cristo. Um dos pensamentos que me ocorreram foi o de que as agonias e turbulências sofridas por Jesus é que possibilitam esses momentos de paz e esperança. A palavra lembrança nesse final de semana deve ir além do conceito “trazer a memória”, “recordar”. Em o Novo Testamento, a palavra grega anamnêsis (recordação) significa “transportar uma ação enterrada no passado, de tal maneira que não se percam a sua potência e a vitalidade originais, mas sejam trazidas para o momento presente”.[1] A sexta feira da paixão e o domingo de Páscoa devem ser mais que um “feriadão” em nossas vidas.
Creio que não se deve enfatizar a crucificação mais que a ressurreição e vice e versa, afinal, ambos compõem a base da fé cristã. Contudo, o sofrimento de Cristo me chama mais atenção. Talvez porque faço parte duma geração que é apegada ao visual e a crucificação é uma imagem forte, não sei, só sei que a cruz é escândalo, é a identificação de Deus com o sofrimento, e isso não é para qualquer divindade.
No fim da Idade Média era comum o povo identificar-se com o sofrimento de Cristo, o sofredor por excelência. Nele encontravam, além de conforto em meio às dores, a esperança de superação de todos os males. No entanto, na época de Lutero as práticas de contemplação do sofrimento de Cristo se multiplicaram e se tornaram superficiais. Em 1519, no tempo da Páscoa, o reformador redigiu um sermão sobre a paixão de Cristo, onde pretendia levar a comunidade a uma verdadeira contemplação do santo sofrimento de Cristo.[2] Como vivemos também num período onde o calvário é sublimado por falsas ofertas de vida sem dor e Cristo sem cruz, as palavras de Lutero são atuais.
De acordo com o reformador, a autenticidade do verdadeiro vislumbre da crucificação resultaem assombro. Aqueleque medita na cruz percebe o rigor e a ira de Deus para com o pecado e os pecadores. A seriedade é tal que nem seu filho unigênito foi poupado (Is 53.5). Surge a pergunta: o que será dos pecadores, se até o dileto Filho é ferido assim? Refletir sobre a crucificação é reconhecer que o pecado é gravidade indizível. Lutero escreveu:
E se pensares bem a fundo que é o próprio Filho de Deus, a eterna sabedoria do Pai, quem sofre, não deixarás de ficar assustado, e quando mais profunda for a tua reflexão, tanto mais assustado haverás de ficar.”[3]
Quem crucificou a Cristo? Fomos nós. O reformador nos orienta a enxergarmos os pregos vazando as mãos de Jesus e termos a consciência de que isso é obra nossa: “pois teus pecados são com certeza responsáveis por seu sofrimento; tu és aquele que, através de seu pecado, estrangulou e crucificou o filho de Deus”.[4]
Segundo o sermão, se a pessoa não chegar a um conhecimento de si mesma, assustar-se com seus pecados a ponto de ficar quebrantada, o sofrimento de Cristo não tem proveito para ela. Quem não se assusta consigo mesmo, é porque não entendeu a gravidade do pecado. Lutero acredita que o fiel deve pedir a Deus que o leve a uma meditação frutífera do sofrimento de Cristo, sem essa intervenção divina, tal contemplação não é possível.
Quanto a quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente que procede melhor do que jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os dias […] pois essa meditação transforma a pessoa […] É aqui que o sofrimento de Cristo efetua sua obra autêntica, natural e nobre, que estrangula o velho ser humano […].”[5]
Somos gratos a Deus, visto esse final de semana não acabar em luto, pois ele ressuscitou, e a nossa esperança é viva (1Pe 1.3). Graças a ressurreição a contemplação do sofrimento de Cristo não é vã, pois ainda que ele faça parte de nossa existência, não é a palavra final.

 


[1] MARTIN, R. P. in: HORTON, S. (org.) Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996. p. 574.
[2] FISCHER, J. in: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: os primórdios – escritos de 1517 a 1519. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal: Porto Alegre: Concórdia: Canoas: Ulbra, 2004. p. 249-250.
[3] LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: os primórdios – escritos de 1517 a 1519. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal: Porto Alegre: Concórdia: Canoas: Ulbra, 2004. p. 251.
[4] LUTERO, Martinho. op. cit. p. 252-53.
[5] LUTERO, Martinho. op. cit. p. 253.