Já pediram podcast sobre liberalismo. Já falamos que não somos fundamentalistas. Mas não adianta, cada pouco o tema volta à baila, como diria meu amigo Bibo. Verdade seja dita, o assunto é marmita requentada pra mim, sem graça. Sendo bem sincero, falamos de duas grandezas da história da teologia que surgiram no século XIX, isto é, lá pelos anos mil oitocentos e tantos. O liberalismo é um pouquinho mais velho, surge já em meados de 1700 na Europa.
A história conta que liberalismo surgiu como fruto de pessoas que tinham como objetivo fazer com que a Bíblia fosse compreensível para as pessoas de sua época. Um esforço que muito continuam tentando fazer. Estes teólogos vieram de uma formação pietista, isto significava que eles aprenderam os doutrina sadia da fé cristã, compreenderam o valor da conversão e de uma vida de arrependimento, sem julgar a fé deles, poderia dizer que buscaram viver uma espiritualidade sadia. Porém, acreditavam que para evangelizar o homem moderno, da era científica, seria necessário se desafazer de algumas formas arcaicas que a Bíblia utilizava. Começaram então a ler a Bíblia utilizando as ferramentas da historiografia. A ideia era descobrir quais fatos narrados na Bíblia era literalmente verdadeiros. Importante era que as pessoas tivessem acesso a verdade absoluta dos fatos. Para eles estava claro que a Bíblia continha o caminho da salvação, a mensagem de Deus, mas a forma utilizada para falar era humana, as vezes mitológica.
A dúvida passou a ser a ferramenta principal destes teólogos: É possível atravessar o Mar com os pés em seco? É possível um morto ressuscitar? É possível comida ser multiplicada? Cientificamente é impossível! Assim como a filosofia idealista de sua época, em especial Immanuel Kant, a conclusão deles é que a mensagem bíblica se resumia em uma ética: devemos fazer o bem, seguir o exemplo dos grandes líderes bíblicos, sermos corretos, justos e praticar o amor ao próximo.
Mais tarde, o liberalismo ganhou um novo enfoque, graças a filosofia existencialista de Heidegger e Kierkegaard. Os mitos da Bíblia seriam reinterpretados buscando uma aplicação pessoal ou espiritual para cada pessoa. Assim, andar sobre as águas significa que Jesus anda sobre os problemas da nossa vida, por exemplo. Parece apelo de pregação, não é? Pois bem, a grande cilada deste esquema é que ao tentar limpar a Bíblia das impurezas históricas, jogaram foram o bebê com a água do banho. Não entenderam que a história de Deus com o seu povo e a revelação de Deus nas Escrituras andam de mãos dadas. A Escritura é a norma, a história apenas serve de exemplo, não o contrário.
Outros irmãos amados e bem intencionados se posicionaram contra o liberalismo. Disseram que dois séculos de liberalismo não produziram vida espiritual, e que destruíram a Igreja. Resolveram então reafirmar as doutrinas fundamentais da fé cristã de forma que a Igreja pudesse pisar novamente em terreno firme, na rocha que é Cristo. O problema não reside nas doutrinas fundamentais que foram elencadas como essenciais por este grupo. A grande dificuldade é que para resguardar a autoridade da Escritura se utilizaram de argumentos que não são assim tão ortodoxos. Em nenhum lugar da Escritura é dito que ela foi ditada letra por letra pelo Espirito. O argumento da inspiração verbal se baseia em 2Tm 3.16, afirmando que a Bíblia foi assoprada por Deus. Se isto for verdade, porque então há mais de 5 mil variantes gregas para o Novo Testamento? Será que os copistas eram tão relaxados assim? Ou será que para os crentes dos primeiros séculos a literalidade da Escritura não era tão importante assim? Se foi assoprada letra por letra, porque há imprecisões geográficas entre as narrativas sinóticas? Qual a razão de Paulo ter escrito palavras pessoais nas suas cartas, se a Escritura é somente divina, e nada humana?
A opção hermenêutica pela Escritura sem a história da sua interpretação se esquece dos dois mil anos em que Deus continuou falando ao longo da história da Igreja. Se esquecem que no principio da Igreja sequer havia cânon! A Escritura surge dentro da Igreja como necessidade da própria por uma regra de fé e prática. Se esquecem do processo histórico de escrita dos textos e dos imensos debates até o fechamento do cânon do Novo Testamento. Fora isto, se esquecem que Deus deu seu testemunho por meio de pessoas fieis ao longo da história, mesmo quando elas não tiveram acesso pleno às Escrituras como nós as temos.
Ao dispensar a história da interpretação o fundamentalismo se torna o novo papa ex-cathedra, e se arroga ao direito de dizer o que é certo e o que é errado em matéria de ensino. A ortodoxia evangélica se coloca no trono de Pedro que tanto combatem e criam um magistério evangélico, onde cada pastor se torna o novo Lutero, novo Calvino, o novo Papa da sua igrejinha. Dispensam o Espírito Santo e o substituem pela seu doutrinamento. Dispensam a Cristo e adoram a Bíblia. Deixam o Pai de lado, na sua transcendência, como Marcião o fez chamando-o de demiurgo.
A minha critica é pesada, eu sei. Vão dizer que sou liberal. Comparem, não o sou. Também não posso ser fundamentalista, ainda que concorde com as doutrinas fundamentais que ambos confessamos! Ainda que eu creia que só a Bíblia é regra para fé e prática! Ainda que eu creia que só a Bíblia é a revelação de Deus para nossas vidas!
A Bíblia é soberana, sim! Porém ela também falou nos últimos milênios para muita gente, e a estes também devemos ouvir, não como norma, mas como auxílio e sabedoria. Quem não houve os mais velhos corre o risco de trilhar os mesmos caminhos errados que os antepassados já trilharam. Moisés já havia nos avisado! Quem tem ouvidos para ouvir, que leia.
Sempre quando surge estas questões a primeira a ir ao banco dos réus é a Bíblia. Muitas vezes o fundamentalismo cria normas que eles mesmos violão ou trazem um novo mistério, colocando o próprio Deus em maus lençóis . Já os liberais fomentam duvidas a torta e a direita tirando a segurança de todo credo cristão. Quem entra no meio deste tiroteio sem assumir uma posição está em maus lençóis, como estou atualmente.
Acho que existem palavras que só flutuam na mente de ambos os lados e que não se elabora ou discute a relação entre as mesmas, que são: Revelação, Inspiração, Iluminação, Psicografia, Canonicidade e Tradição(pq não?).
Muito bom este texto.
Psicografia? Não entendi muito bem o porque desta… Talvez a passagem dos 10 mandamentos?
psicografia pq alguns fundamentalistas defendem que Deus usou o ser humano como uma maquina de escrever pra compor a Bíblia, ou seja, a Bíblia seria um produto puro vindo do céu. Aí eu pergunto: pq Deus não fez como com Mohamed e mandou já pronto O Livro do céu? Pra que tradição oral, testemunho, copias, etc, etc? Será que Deus falhou no processo, ou são este grupo de fundamentalistas que erraram na interpretação?
Esse é um exemplo apenas desse pensador cristão contemporâneo Alexander Stahlhoefer
Acho que psicografia é a mais fácil de todas, tanto é que o Andrei deu um belo exemplo.
Alex,
Antes de mais nada quero dizer que, em minha opinião, o liberalismo é muito mais prejudicial do que o fundamentalismo. Conheço algumas pessoas que entraram em seminários liberais como cristãs e saíram de lá como ateias.
Entretanto, também não sou fundamentalista. Creio, por exemplo, na infalibilidade das escrituras, mas não na inerrância. Pelo que entendi, você tem a mesma opinião.
A pergunta que vou lhe fazer não carrega nenhuma ironia ou segunda intenção, mas apenas dúvida:
Como você define o que deve e o que não deve ser interpretado ao pé da letra?
Samuel,
Isso que vc falou sobre o liberalismo que entram em seminários cristãos e saem ateu, é verdade. Mas o conservadorismo rígido do fundamentalismo, expurga a comunhão de cristãos genuínos. Não sei qual é pior. Tb queria ver a sua resp. Alex, rsrs.
Bryan e Samuel,
Quem faz mais mal? Isso é relativo. Também conheci gente que se tornou agnóstico ou ateu por “causa” da teologia liberal. Estando dentro do seminário (que não era/é liberal) percebi que a causa externa era liberalismo, mas a causa interna era outra: falta de clareza bíblica, falta de um referencial pra vida, estava no seminário por fogo de palha, intelectualismo, pedantismo. Tem gente que se afunda no liberalismo pq este parece ser científico, moderno e coerente com o mundo de hoje. Entram nessa pra posar de sabe-tudo, ou então pra dizer que foram enganados pelo pastor da sua igreja. No fundo são frustrados e não conseguem lidar com as situações difíceis de se conciliar. A culpa do seminário: não oferece capelania, as vezes até oferece, mas é passiva, ao invés de pró-ativa. Seminários liberais tem a dificuldade de só se preocuparem com a “ciência” teológica e não com a vida, e por aí é que descambam.
Já no fundamentalismo, no mesmo seminário vi pessoas irem por esse caminho como uma forma de se proteger, levantar muros contra qualquer coisa que atacasse sua fé ainda pueril. Também não conseguem lidar com os extremos na teologia, mas estão convictos de que precisam encontrar uma forma de marcar posição com relação aquilo que aprenderam durante toda uma vida (mesmo que esteja errado).
Eu particularmente creio que o liberalismo nos legou algo bom: a crítica dura e sincera. O fundamentalismo nos relembra de que precisa manter o foco naquilo que é principal e central na fé cristã. Não dá pra simplesmente jogar fora o ensino da Igreja, os dogmas, a praxis, a Escritura, mas também não dá pra sustentar o insustentável à luz das evidências científicas e da exegese. Vale pra mim o principio da acomodação de Agostinho: se a ciencia ajuda a esclarecer algum fato na Bíblia, então ficamos com a explicação cientifica à luz da Escritura. Enquanto a ciência não for clara, ficamos com a Bíblia tal como está escrito. (Ressalva: Isto vale apenas para questões secundárias! Nunca para os assuntos concernentes à salvação).
Caramba, quanta novidade
muito legal a continuidade dos textos nos comentários
eu entendia que o fundamentalismo que era o saudável, mas não sabia das implicações
Claro que, usando esta mesma linha a Bíblia facilmente deixa de ser a autoridade pela qual se guiar e tudo nela poderia ser questionado. Não é de surpreender que as concepções liberais apenas afundaram ainda mais o protestantismo europeu em ceticismo e falta de legitimação e relevância (e.g. nenhum milagre da Biblia é verdadeiro, portanto, nenhum princípio é sem questionamento).
Por esta mesma razão as Igrejas anglicana, Luterana e presbiteriana, rapidamente aceitaram a ordenação de bispos homossexuais apesar de não ser apoiado biblicamente. O liberalism em boa parte, assim como o método critic analítico (i.e. especulativo) de interpretação das escrituras, é apenas uma casa fundada na areia. Conforme Jesus disse, vem a tempestade e grande tem sido sua queda.
Nunca no texto afirmei qualquer ponto que você diz que afirmei. Pelo contrario reafirmei a autoridade da Escritura como única revelação e regra de fé e prática. Comigo não tem espaço pra teologia natural mano, nem pro primado da razão, só que não venha me dizer que eu tenho q viver um cristianismo acultural, pq isso não existe.
Alex, se leres o que escrevi verás que não estou te acusando de defender essas idéias que derivaram do liberalismo (quem sou eu para te julgar?). Acho até que você é bem conservador e moderado para ser um “liberal” strictu sensu.
Mas reflita no que falei sobre o efeito do liberalismo na Europa. Quantos não foram nesta rota e não acabaram abandonando a fé em Deus e virando verdadeiros apostatas do cristianismo? Pelos frutos se reconhece uma arvore. A propósito não acho que o fundamentalismo estilo americano/pentecostal é inculpe também. Este, em minha humilde opiniao, também se afastou do “canon” bíblico em certo sentido.
Uma coisa que o Caio Fábio afirma o tempo todo, e que me serve como um balizador nessa tarefa meticulosa de navegar entre águas liberais e fundamentalistas, é o princípio de que Jesus é a chave hermenêutica. Ao aceitar que a Palavra de Deus é Jesus, e todas as implicações disso decorrente, desvencilho-me de maiores preocupações com esse cabo de guerra, mas, principalmente, da inflexibilidade e da aridez fundamentalista. Por vezes, desonestidade também.