Clive em: Meu amigo Carlos

Mais uma manha normal de trabalho para Clive. Leituras, preparo do sermão dominical, tempo de oração, atender pessoas que lhe procuram, um dia rotineiro, mas nem por isso entediante. O telefone toca. – Alô! – Oi, aqui é o Carlos, me deram o telefone aí da igreja, disseram pra eu falar com o pastor. – […]



26 de agosto de 2013 Alex Textos

Mais uma manha normal de trabalho para Clive. Leituras, preparo do sermão dominical, tempo de oração, atender pessoas que lhe procuram, um dia rotineiro, mas nem por isso entediante. O telefone toca.

– Alô!

– Oi, aqui é o Carlos, me deram o telefone aí da igreja, disseram pra eu falar com o pastor. – Dizia um jovem numa ligação terrível, onde mal se podia entender o que era falado.

– Sim, Carlos. Aqui é o pastor Clive, pode falar.

– Então cara, eu to internado numa clínica pra dependentes de drogas, e to saindo fora daqui um mês. Vou morar aí por perto. Um camarada daqui, e que te conhece, me disse que era pra falar contigo. Disseram que você pode me dar uma força.

– Carlos, estarei a sua disposição. Temos um pequeno grupo, onde sentamos pra conversar sobre as nossas dificuldades na áreas dos vícios. Você será bem-vindo no grupo. Mas se achar melhor, dá uma passada aqui e fala comigo em particular antes.

– Show véi! Então se falamo daqui um mês mais ou menos.

– Estarei lhe esperando! Deus te abençoe.

A ligação cai repentinamente. Por uns dois meses, talvez um pouco mais não tive qualquer notícia do rapaz. Imaginei que tivesse recaído, ou que tivesse escolhido outro caminho para lutar contra sua dependência. Não é fácil lutar contra algo que é mais forte do que a vontade de parar, ainda mais com o preconceito da sociedade e a estigma que persegue o dependente.

Certo dia o telefone volta a tocar.

– Alô.

– Oi Pr. Clive, aqui é o Carlos, lembra de mim?

– Oi Carlos, pra ser sincero, são tantas pessoas que tem o seu nome, que ainda não consigo lhe reconhecer por telefone.

– Ah, lógico! Nem dá bola. Eu aqui falando como se a gente já se conhecesse faz um tempo. Na real eu te liguei quando tava na clinica, pra ver se rolava uma ajuda aqui na cidade. – Respondeu ele de forma alegre e empolgada.

– Sim Carlos, lembro-me da sua ligação. E então, como você está? – Perguntei com interesse pela sua situação.

– Ah pastor, então, tu to de boa. Pensei várias vezes em ligar, mas eu fiquei meio que com vergonha de aparecer numa reunião. E também eu sou de outra igreja, aí pensei que o meu pastor fosse ficar bolado de eu ir aí, tá ligado?

– Compreendo perfeitamente. Mas então, podemos marcar pra conversar ao vivo?

– Pra ontem! – Respondeu-me prontamente.

– Ok. Então nos encontramos amanhã…

Fiquei muito empolgado que o Carlos retornou e que buscou falar comigo. Nem sempre é o caso. Claro que já fiquei esperando encontros marcados com dependentes várias vezes, é normal que fiquem com vergonha, ou mesmo que a ansiedade de se encontrar com “um pastor” lhes faça cair na tentação de usar algo “só pra dar coragem”. E aí a vergonha acaba sendo maior…

Carlos veio ao meu escritório na hora marcada. Um rapaz jovem, atlético, bem vestido e asseado. Muitos pensam que um dependente de substâncias psicoativas é um morador de rua, mendigo vestido em trapos, mal cheiroso e descuidado. Não é verdade. Assim como não é verdade que todo morador de rua é usuário. Preconceitos e estigmas atrapalham muito aqueles que desejam sair dessa situação.

– Oi Carlos, seja bem-vindo, entre aqui e sente-se.

pastor clive sentado com meu amigo carlos

– Obrigado pastor. – Disse ele com certa reverência, curvando a cabeça e procurando se acomodar na cadeira.

– Carlos, antes de mais nada, entre eu e você não é necessária qualquer burocracia. Me chame de Clive, simples assim. Não me chame de pastor, nem de senhor, ou coisa parecida. Ainda que não tenhamos intimidade, quero que nossa conversa seja sempre como de amigo. Tudo bem? – Procurei esclarecer esta questão para deixá-lo a vontade, um distância promovida por títulos só atrapalha nessas horas.

– Legal então, pass.., digo Clive. – sorriu pelo “erro”.

– Carlos, como você está hoje?

– Clive, to bem. To limpo, to trabalhando, e feliz.

– Que bom Carlos, me alegro que você se sinta bem consigo mesmo. – Procurei reforçar o aspecto positivo da sua fala.

– Mas nem sempre é fácil, de noite chego em casa, sento com minha esposa pra tomar um café. Tiramos um tempo juntos pra conversar. E sabe como é, as vezes tem as coisas do dia-a-dia, as contas pra pagar, os problemas dela, e isso me irrita muito. Tenho vontade de bater nas paredes, tento conter minha raiva, porque não quero magoar ela, nem quero sair de casa, porque se eu sair já sei onde eu vou parar. E aí não vai ser nada bom. – Contou logo de cara o dilema que enfrenta cada dia.

– E sua esposa compreende a sua situação? Como ela reage quando vê que algum assunto lhe deixa nervoso, ansioso ou com vontade de usar?

– Não posso reclamar dela, tá ligado? Se não fosse por ela eu tava na droga ainda. Eu to nessa vida já tem uns 10 anos, faz dois que to junto com ela. No começo eu conseguia enganar ela, mas chegou uma hora que não deu mais. Daí ela me botou na parede: ou eu parava com a droga, ou ela me deixava. Aí eu tentei enrolar ela. Como ela ia numa igreja, eu disse que ia junto. Mas era só pra pagar uma de santo.

– E então, como você chegou a aceitar o tratamento numa clínica?

– Pois então, aí que a coisa é doida! Eu tava indo na igreja com ela, mas nem acreditava em nada. Era só pra enrolar ela mesmo. Daí um dia desse ouvi um mensagem que foi direta pra mim. Era como se Deus falasse “Eu sei da tua situação e eu posso te tirar dela, só que tu tem que falar a verdade”. Caraca! Foi tenso Clive, pode crê. Aí eu chamei ela e o pastor, e falei a real pra eles. – Falou-me olhando diretamente nos olhos.

– E como foi o papo?

– Como se uma pedra gigante saísse dos meus ombros. Falei pra eles qual era a situação, que eu tava enganando ela e tal, que eu tava usando pó todo dia, que eu torrava a grana toda em droga e em besteiras. Foi difícil, mas precisava fazer aquilo. – Falou abrindo a situação pra mim.

– Como ela reagiu?

– Ficou chocada, chorou um monte… achei que ela ia me largar alí mesmo, tá ligado?

– Posso compreender o sentimento dela.

– Mas o pastor ofereceu uma clínica pra eu me tratar. E aí ela achou a ideia boa, e se acalmou um pouco. Resolvi aceitar, mesmo porque queria levar adiante aquilo que tinha acontecido comigo, aquilo que senti como se Deus estivesse falando direto comigo.

– E você acha que fez bem?

– Com certeza! Foi difícil passar seis meses na clínica, mas foi bom. Lá conheci o Deus que falou comigo. Li a Bíblia, encontrei gente que tava realmente a fim de me ouvir. O meu terapeuta lá era muito show, cara muito bacana e aberto. Ainda hoje, falo com ele quase toda semana. Foi ele que disse que era eu vir falar contigo! – Contou-me alegre e empolgado por agora estar bem.

– Fiquei muito feliz quando você me procurou. Gosto de ajudar, de conversar, de dividir meu tempo com quem está precisando de um ouvido, de alguém com tempo e disposição.

– Obrigado Clive. Hoje já tenho que ir, mas venho no grupo de vocês e quero ainda trocar umas idéias, sabe, ainda tenho umas dúvidas.

– Pergunte, não vá pra casa com ela – retruquei rapidamente.

– Ah Clive, é que assim, eu sou de outra igreja, tá ligado. E gosto de lá, só que eles não tem esse trabalho de apoio que vocês tem aqui. Será que o pessoal daqui não vai achar chato que eu não venho nos cultos, sei lá, não seria melhor mudar pra cá? E tem o meu pastor, acho que ele vai achar que eu sou traíra por ter vindo pra cá procurar ajuda. Ele me ajudou tanto e daí eu venho aqui pra participar do grupo de apoio.

– Carlos, que bom que você tocou nesse assunto. Primeiro, nem pense em sair da sua igreja pra me agradar, ou pra agradar alguém daqui. Aliás, a maioria das pessoas do grupo nem vão em igreja alguma. Isso não me importa, não estou procurando membros, estamos aqui pra ajudar quem precisa. Fico feliz se alguém desejar participar aqui na nossa igreja, mas não quero de modo algum fazer com que você saia de sua igreja. Fale com seu pastor, seja sincero com ele. Diga porque e pra que você veio aqui. Creio que ele vai te entender, aliás, não foi ele que lhe aconselhou ir pra clínica?

– É você tem razão, ele me ajudou muito, vai entender sim. É coisa da minha cabeça, tá ligado?

– Sim, te entendo. Saiba que aqui não é como na boca, aqui procuramos criar um ambiente de confiança, onde você se sinta bem pra falar dos seus problemas, onde você tem liberdade pra tocar nas feridas abertas buscando cura. Você não deve nada pra mim, nem pra ninguém do grupo. Aqui não tem rabo preso. Nosso compromisso é apenas de ajudar e ser ajudado. Só isso.

– Clive, era isso que eu tava procurando. Muito legal encontrar você. Semana que vem eu volto, volto mesmo. Quero falar mais… tem tanta coisa pra contar. Disse ele empolgado e já ansioso pelo próximo encontro.

– Fique bem meu amigo. Que o Senhor lhe acompanhe e te dê paz. Nos vemos então

Dei-lhe um abraço e o acompanhei até a porta. Carlos saiu de cabeça erguida e feliz por ter encontrado um lugar onde pode ser ouvido e respeitado, onde era finalmente alguém com nome, com dignidade e com valor. Claro que as feridas da vida na dependência doíam muito, mas quem não tem feridas que precisam de curativos?

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