Durante o ano de 2017, a Dra. Silvana Oliveira e Silva, membro da equipe do Lado a Lado, pesquisou a convite de sua equipe ministerial a delicada relação entre os cristãos e a sexualidade. Tal pesquisa foi fundamental para fornecer o embasamento teórico necessário para a produção dos episódios sobre o tema lançados nesse ano.
Confira abaixo, um dos textos produzidos:
Aborto é algo presente na História Humana há muito tempo
O aborto pode ser definido como a interrupção de uma gestação em qualquer momento antes do nascimento. Desde muito cedo, ele esteve envolvido nas tentativas de refrear a gravidez. Ele pode ser encarado como um ato de misericórdia, uma forma de salvar a vida da mãe, um modo de planejamento familiar e uma forma de humilhar os inimigos, dependendo da civilização e corrente religiosa. A história dele no ocidente pode ser dividida em quatro fases:
1ª. Antiga
Nas culturas grega e romana ele era realizado por parteiras ou pelas próprias mães. A vontade da mulher importava menos do que o pátrio poder – ou seja, o consentimento ou intimação do pai ou patrão. Alguns pensadores romanos chegaram a fazer oposição, alegando bem comum, impiedade, ofensa aos deuses, à família, e à natureza – mas não em defesa diretamente do feto.
2ª. Anárquica
Com a queda do Império Romano o controle ou repressão estatal foi substituído pela palavra da Igreja. O judaísmo e o cristianismo se opuseram duramente contra o aborto, e a discussão girava em torno de como a punição mudava dependendo da fase da gestação. Se houvesse movimentos fetais, por exemplo, a penalidade de quem abortava poderia ser mais grave.
3ª. Repressiva
Com o Renascimento científico e cultural a sociedade passa a ter mais conhecimento sobre gestação, enquanto que as parteiras perdem poder, se tornando aprendizes de médicos – e culpadas pela mortalidade materna. O aborto é cada vez mais reprimido. As penas, cada vez mais graves.
4ª. Regulamentada
Depois da Segunda Grande Guerra, várias mudanças aconteceram de forma rápida. A pílula anticoncepcional permitiu à mulher controlar de forma eficaz a sua fertilidade pela primeira vez, inclusive optando por não ter filhos. Os anos 1960 trouxeram um processo de separação entre maternidade e sexualidade, e o aborto tornou-se o “símbolo da expropriação do corpo e da identidade feminina”, de acordo com Giulia Gaelotti.
O pensamento religioso e estatal se dividem, e movimentos sociais convocam o Estado a rever a repressão. Desde então diversos países passaram a revisar as leis punitivas e legalizar o aborto provocado. Em Portugal, por exemplo, 95% dos abortos são realizados por conveniência e pelo pelo bem estar materno, fora das indicações clássicas (como má-formação fetal, risco materno e violência sexual).
Mulheres abortam, inclusive cristãs. Algo está errado.
Aborto no Brasil
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE, em 2013 a porcentagem de mulheres entre 18 e 49 anos que haviam realizado pelo menos 1 aborto na vida era de 2,1%, acontecendo principalmente em zonas urbanas e no Nordeste. Já a Pesquisa Nacional de Aborto, que usa um método com urnas (o que preserva a privacidade da participante), verificou entre 2010 e 2016 que entre as mulheres brasileiras de 18 e 39 anos, residentes em áreas urbanas, 13-15% já abortaram pelo menos uma vez na vida.
Estimativas populacionais apontam que o número de abortos no Brasil é alto, porém em estabilidade. Já o número de complicações tem caído, devido ao abandono de métodos cirúrgicos e clínicas ilegais e uso de medicamentos abortivos menos inseguros.
O aborto ocorre em todas as faixas etárias, em todos os extratos sociais e raciais. Porém mulheres não brancas, de baixa escolaridade e abaixo de 25 anos são as que mais abortam. Mas não nos enganemos: todas as categorias de estado civil, em todas as regiões do país, estão envolvidas. Muitas são mães, e 25% se declaram cristãs.
Pela Pesquisa Nacional de Aborto sabemos que em 2015 provavelmente 503 mil abortos foram realizados no Brasil, e 125.750 entre pessoas que possivelmente frequentam alguma igreja cristã. Existem pessoas em nossos ambientes eclesiásticos, vivendo um ambiente e uma “cultura cristã”, que estão praticando aborto. Não dá para eliminar o tema da pauta.
O aborto na Bíblia
Há basicamente apenas um texto na Bíblia diretamente ligado ao tema do aborto do ponto de vista prático:
“Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes; mas se resultar dano, então darás vida por vida” – Êxodo 21:22-23
Esse texto do livro de Êxodo fala do aborto por trauma involuntário, e prevê indenização e penalidade progressiva para danos à saúde da mulher. Nesse tempo, fetos, bebês e crianças eram vistos com o mesmo valor, sem haver uma distinção sobre os mesmos. Dentro da cultura hebraica, que incentivava e louvava a fertilidade e os muitos filhos, eles eram considerados de forma preciosa.
Conforme Êxodo 4: 11 “Quem fez a boca do homem? Ou quem fez o mudo ou o que vê, ou o cego ? Não Sou Eu, o Senhor?”, a soberania de Deus se fundamenta como geral e absoluta, inclusive sobre a vida e a morte.
O uso de passagens das Escrituras para defender o aborto, além de demonstração de baixo conhecimento bíblico, uso da Palavra com má fé e até, leviandade.
Bem, precisamos falar sobre aborto. Isso está claro! Mas falar como? Quatro observações fundamentais:
O aborto e a Igreja
- A discussão sobre aborto dentro do pensamento cristão tem focado nas exceções, não nas regras. Se discute sobre o aborto em caso de violência sexual, em caso de malformação crítica (como anencefalia) e em caso de risco de morte para a mãe. Mas estas são exceções. A maioria esmagadora dos abortos realizados no Brasil (e consequentemente dentro de nossas igrejas) não se enquadra aí.
- Aborto provocado se tornou um problema de saúde pública, por sua banalização. Mas sua origem é outra. O tema moderno do aborto nasce (principalmente no Brasil) de um movimento eugenista, determinado a reduzir à força a população pobre, que seriam celeiro de revoluções e criminalidade. Há países que permitem o aborto de fetos portadores com Síndrome de Down, numa lógica parecida. Entretanto, ela é maquiada como “libertação feminina”, “direito da mulher” ou “saúde pública”.
- Aborto não é tema exclusivamente feminino. Há muitos relatos de mulheres abortando coagidas, incentivadas ou obrigadas por homens – da família, amigos ou parceiros. O homem “aborteiro” é muito mais comum do que parece. E está ileso e impune.
- 4. Aborto se tornou um tema tabu na igreja porque está escondido sob outro tema tabu: Educação Sexual! As pessoas não sabem o que é a vida sexual e reprodutiva e não recebem o mínimo de educação sobre o tema. Elas iniciam a vida sexual dentro ou fora do casamento inconscientes de seus deveres, direitos e responsabilidades.
Os aborto e seus diferentes casos
Em caso de estupro
O caso mais extremo, e mais difícil. Como exigir que uma mulher que sofreu tanta violência seja obrigada a carregar em seu ventre a lembrança desse ato numa consequência que transformará radicalmente a sua vida? Alguém é capaz de condenar uma mulher que quer, num momento de desespero, encerrar um dos capítulos mais difíceis desse processo? Se alguém tiver essa resposta, OK. A Escritura não nos dá um respaldo forte para a interrupção ou manutenção da gestação, mas, lembramos de um Deus criador, sustentador e norteador de toda a vida.
“O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e a faz subir.” – I Samuel 2:6
“Não matarás.” – Êxodo 20:13
“Pois tu formaste os meus rins; entreteceste-me no ventre de minha mãe. Eu te louvarei, porque de um modo tão admirável e maravilhoso fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado, e esmeradamente tecido nas profundezas da terra. Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos os dias, sim, todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles.” – Salmos 139:13-16
De acordo com a Bíblia, a vida é um bem inviolável. De acordo com o Sermão no Monte, o próprio Cristo exorta sobre o grave pecado que é matar o ser humano – mesmo que seja no coração. Logo, os argumentos bíblicos que alguém tente utilizar a favor do aborto neste caso se enfraquecem diante dos argumentos pró-vida presentes.
A lei brasileira apoiará a mulher que decide abortar neste caso. Já a igreja não deve promover o linchamento moral, já que se encontra diante de uma questão extrema. Mas é importante salientar que Deus é Constante e Amoroso, mesmo nesta Criação caída em que vivemos. Para uma mulher sozinha, optar por não abortar nesse caso é esperar que ela carregue algo imensurável. Mas nós, cristãos, cremos que Deus não nos deixa sozinhos, e esperamos que a Graça Dele alcance quem se encontra assim, independente da decisão tomada.
Com Igreja, precisamos lutar para que mulheres nesta situação recebam suporte psicossocial, sejam protegidas de seus agressores, e que estes sejam punidos pelo rigor da lei. O que muitas vezes não acontece. A mulher violentada grávida precisa ser amparada pela Igreja, inclusive após o parto, e também do ponto de vista financeiro e emocional.
Em caso de risco materno
É menos polêmico, e bem respaldado pela lei brasileira. É chamado de aborto terapêutico, e visa salvar a vida da mãe. Partindo-se do ponto de vista de que as duas vidas se perderão, e se tenta salvar uma acelerando a perda da outra. Opta-se por salvar a árvore ao invés do fruto, na esperança de que ela seja capaz de gerar outros frutos.
A posição Católica é pétrea no tema, inclusive afirmando que a natureza eliminaria o feto que não estivesse destinado ao nascimento. Nas igrejas evangélicas as opiniões são discordantes, mas tendem a favorecer a interrupção da gestação nesse caso.
Cuidados são muito importantes: de acordo com o Conselho Federal de Medicina, não é necessário consentimento judicial ou dos conselhos de medicina, mas dois médicos precisam avaliar a paciente, e um deles precisa ser o médico especialista na doença que justifica a indicação de interromper a gravidez. Um termo de consentimento deve ser assinado pela paciente ou seus responsáveis. Em casos como radioterapia, quimioterapia, câncer e coma, a conduta deve ser individualizada. Deve-se tomar muito cuidado e saber se a indicação é real e a única alternativa.
A decisão, de acordo com nossa lei, é pessoal e passa pela avaliação médica. Muitos porém encaram essa situação como provação de fé. Cabe ao cristão aplicar-se às disciplinas espirituais e decidir qual a sua posição a respeito.
Em caso de malformação grave
Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a antecipação do parto em mulheres gestantes de fetos portadores de anencefalia é um direito constitucional. Anencefalia é uma malformação congênita grave, em que não há o fechamento da extremidade superior do corpo, faltando a caixa craniana, o cérebro e o cerebelo. A doença é incompatível com a vida extrauterina e a gestação pode ser interrompida em qualquer momento, sem necessidade de autorização judicial, precisando apenas da anexação de comprovantes da anomalia ao processo e alguns procedimentos de consentimento para o aborto.
Há malformações muito graves, que também seriam incompatíveis com a vida fora do útero, e motivam processos de autorização judicial para aborto. Há países que legalizam o aborto de fetos com qualquer malformação, e muitas mulheres cristãs podem estar nesse dilema, que gera muito sofrimento, principalmente quando a gestação é planejada e esperada. Elas sentem-se culpadas, em juízo divino, pagando por seus pecados ou por ação do Inimigo.
Talvez um dos grandes problemas que a mulher numa situação dessas tenha que enfrentar seja o bombardeio mental de levar uma gestação inviável envolta de pessoas que perguntem sobre o bebê, que deem presentes e façam perguntas inconvenientes. Ver outras gestações seguindo em frente e bebês nascendo, enquanto se sente como um caixão ambulante, pode gerar consequências psicológicas graves.
A decisão sobre esse assunto cabe ao casal que passa por isso, mas sabemos que Deus tem propósitos misteriosos nas situações mais difíceis. Além disso, nada escapa ao Seu controle – nem mesmo no caso de gestação assim. Por isso, a fé não pode se abalar em um caso desses. A pergunta que deve ser é “para quê houve me foi permitido passar por esta situação? Que lições posso aprender com isso?”. Há casais que levam a gestação adiante e tem seus filhos por poucos meses ou anos, com sequelas graves. Em outros casos a vida dura muito pouco, e depois da constatação da morte encefálica, oferecem os órgãos intactos. Assim, a doação salva outras vidas, e pode conferir um significado nobre a todo o sofrimento.
Aborto pelo bem estar materno
O aborto pelo bem estar materno é apenas mais uma expressão do egoísmo e egocentrismo que a humanidade vive na atualidade.
Esse caso está fora dos anteriores – mas representa a maioria hoje. De acordo com a Pesquisa nacional de aborto, 48% das mulheres utilizam medicamentos (ilegais no Brasil), comprados pela mulher, ou seu parceiro, mãe ou algum amigo. Muitas dessas se tornarão mães posteriormente, embora haja o risco de esterilidade dependendo da forma e complicações do abortamento.
Os motivos são vários:
- adolescência,
- desamparo pelo parceiro (que pode estar coagindo ou até obrigando ao aborto),
- visão da gestação como estorvo em determinados momentos da vida (como universidade),
- temor ou sensação de despreparo para a maternidade.
Para alguns, eliminar um ser que seria mal amado ou rejeitado é um mal menor. Muito da crise da mulher cristã sobre a opção pelo aborto vem da vergonha da exposição de uma gravidez indesejada e muitas vezes fora do casamento, o ideal de Deus. A gravidez no “momento errado” ou “indesejada” é um risco que atinge todos que tem vida sexual ativa, em qualquer situação. Mesmo quem usa métodos contraceptivos passa pelo risco da falha – que é baixo, mas que existe na vida real. Por isso a descoberta de uma gestação em curso pode ser um susto, ou até um transtorno para muitos.
Muitos defensores do direito feminino ao aborto colocam a autonomia da mulher acima do direito que o ser já vivo dentro dela tem de viver uma vida fora do útero. Alegam que a dor e a carga da gravidez e suas transformações hormonais estarão ao encargo somente da mãe e, portanto, cabe a ela a decisão sobre isso. Também há uma parcela da motivação para abortar que, mesmo travestida de bem estar materno, esconde o egoísmo paterno, que induz a mulher a abortar.
O tema permanece complexo e polêmico. É recomendado o cristão ter um bom conhecimento sobre reprodução humana e contracepção, antes de entrar na discussão sobre aborto, usando sempre a Ortodoxia como suporte à Ortopraxia.
Se uma pessoa é cristã e aceita o aborto como algo possível, ela precisa rever o que ela entende por cristianismo e por conversão.
Sobre o Autor:
Dra. Silvana Oliveira e Silva
Médica formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem título de especialista em Geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, é mestra em Ciências Médicas também pela UFRJ e atua no magistério de nível superior na mesma universidade.
Congrega na Igreja Batista Jardim Icaraí, em Niterói, RJ.
Referências Bibliográficas:
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- Maria das Dores Campos Machado. Identidade religiosa e moralidade sexual entre católicos e evangélicos. In: Direitos Tardios: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. Fundação Carlos Chagas, 1997.