Precisamos falar sobre doença psíquica e suicídio

No recente debate sobre pecado, suicídio e inferno, que assolou a internet brasileira, vimos de tudo: gente muito segura de uma ou de outra opinião, gente cheia de teologia, gente cheia de compaixão, gente cheia de dúvidas. Eu, particularmente, senti falta de um elemento importante para a abordagem do problema. Parece que o tema saúde […]



26 de julho de 2017 Bibo Blog

No recente debate sobre pecado, suicídio e inferno, que assolou a internet brasileira, vimos de tudo: gente muito segura de uma ou de outra opinião, gente cheia de teologia, gente cheia de compaixão, gente cheia de dúvidas. Eu, particularmente, senti falta de um elemento importante para a abordagem do problema. Parece que o tema saúde mental, tão íntimo da questão do suicídio, bate na porta dos Evangélicos e fica do lado de fora.

Como falar de suicídio sem abordar a sua possível principal causa raiz? O transtorno psíquico apresenta correlação estarrecedora com suicídio – da casa dos 80%.

Doenças relacionadas à mente recebem o nome de doenças psicopatológicas e o seu estudo é a Psicopatologia. Elas podem ser classificadas como transtornos de humor (como a depressão e o famoso transtorno afetivo bipolar), transtornos de personalidade (como esquizoide, paranoide e borderline) ou transtornos de ansiedade (como síndrome do pânico e TOC). Há ainda a conhecida esquizofrenia. As classificações são complexas e controversas. Se você se interessa pelo assunto, recomendo uma rápida pesquisa sobre DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

Se há complexidade para classificar, os diagnósticos e tratamentos são ainda mais delicados. Quem tem ou teve, como eu, um psicótico na família, sabe muito bem que a medicação nem sempre funciona. Cada indivíduo responde de modo particular. Na linguagem popular, demora para “acertar” o remédio. Além disso, entre internações e medicamentos, o custo é elevado. Os efeitos colaterais também podem ser terríveis.

A psicoterapia, outro elemento caro na equação, tem potencial para atenuar muito e, em alguns casos, praticamente resolver o problema do paciente. Para outros indivíduos, apenas o medicamento é capaz de devolver o doente a condições próximas da normalidade. Eventualmente, é difícil identificar um psicótico. Eles não vivem sempre em surto.

Além disso, nem todo paciente de transtorno psíquico é psicótico ou terá um surto. O caso mais típico de transtorno mental sem psicose ou surto é a depressão. Sim, depressão é uma doença ou sintoma, e precisa de tratamento. Como diferenciar uma depressão clínica de um sentimento de tristeza profunda, porém passageiro? O desafio é enorme.

Antes de sair mandando suicidas para o Inferno, é importante considerar com atenção a complexidade do assunto com o qual estamos lidando.

Suicídio e doença mental

O estabelecimento de correlação entre suicídio e doença mental é bem documentado na literatura técnica. Embora os dados precisos sobre a incidência de doentes mentais entre pessoas que cometem suicídio sejam difíceis de se obter, a maioria das pesquisas varia entre 2% e 19% para suicídios racionais. Ou seja, é razoavelmente seguro afirmar que pelo menos 80% dos suicídios possuem algum tipo de componente psicopatológico. As fontes estão na breve bibliografia ao fim do artigo.

Entre as doenças da mente, a campeã da correlação com o suicídio é a depressão. É importante salientar que o diagnóstico da depressão pode ou não ser uma síndrome psiquiátrica. Pode ser um estado de humor passageiro ou algo sério e crônico. O transtorno depressivo maior é uma síndrome grave e é a ele que eu me refiro ao falar de correlação intensa com o suicídio. Outros transtornos mentais podem gerar quadro clínico de depressão, como é o caso do transtorno afetivo bipolar.

É sempre bom lembrar que em qualquer estudo estatístico, correlação não implica causalidade. Ou seja, o número de eventos em que suicidas apresentam doença mental supera 80%, mas isso não quer dizer necessariamente que a doença seja sempre a causa do suicídio. É legítimo e razoável afirmar, entretanto, que ao menos uma relação forte existe. Nesse caso, a relação é estarrecedora.

Tratar a depressão com seriedade, sem subestimá-la e sem preconceitos é um dever de quem se diz preocupado com a questão do suicídio. Claro, episódios de esquizofrenia, e outros transtornos de personalidade, humor e ansiedade também podem levar ao suicídio e também podem causar depressão.

Causas das doenças psíquicas

Ao falar das possíveis causas dos transtornos da mente, pisamos em território de disputa. Diferentes campos do conhecimento clamam para si, com devido respaldo científico, uma pitada de responsabilidade e é muito difícil apontar exatamente como a pessoa foi atingida pela doença.

Entre as causas mais plausíveis para doenças psíquicas, encontramos:

  • Genética: há estudos de genes específicos que podem provocar esquizofrenia, por exemplo.
  • Neurobiologia: Alterações bioquímicas no cérebro, bem como alterações no funcionamento dos neurotransmissores.
  • Traumas da fase oral: problemas sofridos na primeira infância são relacionados com diversas doenças segundo a teoria psicanalítica.

Possivelmente, a incidência de transtornos psíquicos esteja relacionada a um conjunto de fatores que incluem genética, neurobiologia e traumas. A ênfase correta no aspecto traumático das doenças mentais é fundamental para que se possa agir na prevenção. Subestimar a psicanálise é um desserviço a quem pretende reduzir o sofrimento do doente e da família ou para quem deseja a queda no número de doentes e de suicídios.

Vomitar na internet que suicidas vão para o Inferno ou despejar ódio contra psicólogos e psiquiatras não ajuda em nada. Na verdade, atrapalha.

Dados sobre o suicídio: alarmantes, mas não desesperadores

Dois dados são alarmantes a respeito do problema:

  • O crescimento das taxas de suicídio entre adolescentes é de 200% a 400% nos últimos vinte anos (Klerman & Weissman, 1989; Goodwin & Runk, 1992).
  • Para cada suicídio, existem pelo menos dez tentativas. Para cada tentativa de suicídio registrada, existem quatro não conhecidas (Diekstra, 1993).

Estamos diante de um aumento significativo de casos. Há dados da Organização Mundial da Saúde que apontam para uma queda nos casos quando considerados todos os grupos etários. O lado que não deixa margem para o desespero, mas pede planejamento preventivo, é o fato de podermos identificar as tentativas mal-sucedidas e tratarmos da doença de quem sabemos que já possui tendências suicidas.

A judiada classe dos psicólogos

Para agir preventivamente e evitar mais suicídios, o trabalho do pastor e da comunidade cristã é fundamental. Nós temos acesso ao coração das pessoas e a probabilidade de conhecermos alguém com depressão ou outros transtorno mental é grande. Temos contato com a dor. E, se seguimos a Bíblia e somos cheios do Espírito, sofremos a dor do outro.

Se temos acesso às dores alheias, somos indicados para identificar primeiro os sinais de alerta que uma pessoa com problemas emite. E, nesse ponto, entra uma questão chave. Precisamos reconhecer nossas limitações para lidar com casos tão complexos. Sugerir psicoterapia ou indicar tratamento psiquiátrico é algo sempre delicado, que deve ser feito com muito tato e carinho. Mas temos que recorrer à ajuda profissional.

Infelizmente, o púlpito brasileiro com frequência prefere transformar psicólogos e psiquiatras em inimigos. É comum que pastores não queiram que suas ovelhas procurem ajuda de profissionais da saúde. Esse mal assola de neopentecostais a reformados. O gabinete pastoral, sozinho, não dá conta de lidar com doenças para as quais existe tratamento médico adequado. Gabinete não cura câncer, nem esquizofrenia. Para um, há o oncologista, para outro o psiquiatra, para ambos, há Deus.

Implicações teológicas de um diálogo com a psiquiatria

Um relacionamento interdisciplinar positivo com a área da saúde mental faria muito bem aos teólogos. A questão mais óbvia se concentra na ética cristã: quão legítimo é atribuir responsabilidade a alguém que comete pecado, mas que não tem plena – ou nenhuma – consciência do que está fazendo? Teólogos que pretendem tratar o tema do suicídio com seriedade precisam responder a esta pergunta com dedicação intelectual e apoio em subsídio técnico provido pela ciência.

No campo da hamartiologia, o trabalho é mais árduo. O teólogo deve trabalhar o conceito de pecado de modo a entender como a entrada do pecado no mundo afeta a mente humana. O desafio é de superar o anacronismo, sem impor categorias estranhas ao mundo bíblico, mas dialogar ousadamente com o texto da Escritura, extraindo sentido com ferramentas exegéticas que permitam a compreensão de uma antropologia bíblica holística e suficiente para fornecer uma visão adequada dos seres criados. Somente com uma “teologia do ser humano” robusta podemos refletir a respeito das doenças mentais e suas implicações espirituais.

É somente depois desse duro exercício, com o manual de exegese em uma mão e a Psiquiatria na outra, que podemos começar a falar, por exemplo, na influência demoníaca sobre pessoas que tentam suicídio.

No campo da teologia pastoral, é aconselhável que se pense em práticas padrão para a ajuda da pessoa que pensa em suicídio. O desenvolvimento de uma comunicação carinhosa e uma linguagem cheia do Espírito é urgente para a prevenção do suicídio, bem como para consolar a família que perde um ente querido desta forma.

A questão não é se o suicida vai para o Inferno. Isso é decisão e assunto de Deus. A questão é que a pessoa que tenta o suicídio pensa estar vivendo o Inferno na Terra. E, para essas trevas,  fomos chamados para ser a luz.

Nas palavras do amigo Isaque Sicsú: “É muito mais cristão chorar com os que sofrem e lamentar o suicídio, do que teologizar sobre o suicídio”.

Em tempo. Não sou psicólogo ou psiquiatra. Sou apenas mais um interessado no assunto, assim como você, se chegou até aqui na leitura. Não fique com a minha opinião apenas.

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Breve bibliografia sobre suicídio e doenças mentais

CARNEIRO, P. C. & FIGUEIROA, L., 1994. O tratamento de paciente suicida com depressão maior. Neurobiologia Recife, 57:37-52.

DIEKSTRA, R. F. W., 1993. The epidemiology of suicide and parasuicide. Acta Psychiatrica Scandinavica – Supplementum, 371:9-20

GOODWIN, F. K. & RUNK, B. L., 1992. Suicide intervention: Integration of psychosocial, clinical, and biomedical traditions. In: Suicide and Clinical Practice (D. Jakobs, ed.), pp. 76-93, Washington, D.C.: American Psychiatric Press

HAWTON, K. & CATALAN, J., 1987. Attempted Suicide: A Practical Guide to its Nature and Management. 2nd Ed. London: Oxford University Press

HENRIKSON, M. M.; ARO, H. M.; MARTUNEN, M. J.; HEIKKINEN, M. E.; ISOMETSÄ, E. T. KUOPASSALMI, K. I. & LÖNQVIST, J. K., 1993. Mental disorders and comorbidity in suicide. American Journal of Psychiatry, 150:935-940

KLERMAN, G. L. & WEISSMAN, M. M., 1989. Increasing rates of depression. JAMA, 261:2229-2235.

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