Um parâmetro para acertar os ponteiros.
É quase três da tarde, Immanuel Kant se prepara para sua tradicional caminhada, mas da sua cabeça não consegue tirar a recensão feita por Christian Garve ao livro que ele considera sua obra prima, a Crítica da Razão Pura. Poderia até ser irônica, a preocupação com a crítica da crítica, se Emanuel não tivesse se esforçado para apresentar elementos construtivos ao idealismo que estava criticando, enquanto que as palavras dirigidas ao seu livro fossem tão negativas. Não entenderam, só pode ser isto. Também este senhor, está mais para crítico literário do que para filósofo, ganha a vida fazendo resenha do trabalho dos outros, tecendo comentários que lhe rendem o status de pensador das massas. Naquele dia, Immanuel termina sua caminhada com a resolução de escrever mais um livro, os Prolegômenos, uma introdução ao outro, mais palatável ao gosto popular. Pobre Immanuel… definitivamente ele não é um filósofo para muitos…
A pequena narrativa envolvendo um dos filósofos alemães mais influentes de todos os tempos e outro, muito popular à época, mas que entrou para a história somente por sua oposição ao primeiro, serve para ilustrar que a fina flor da intelectualidade não pode prosperar sem um contraponto que por natureza deve ser mais popular. Afinal, ao se falar de filosofia devemos partir de algum pensador já consagrado? Ou das perguntas que nos fazemos, solitários, analisando pessoas no metrô? Encontrar filosofia em Matrix e nos Simpsons é lícito? É algo intencional dos artistas pop? Ou um forçar de barras de quem quer intelectualizar a obra e vender livros? Quais os limites entre estilo de vida e filosofia? O discurso religioso entra nesse debate? Bem, há quem diga que o importante da filosofia são as perguntas e não as respostas. Então agora cabe a você, parar por aqui, ou continuar a ler…
O Pop, o popular, versus a «Filosofia».
A briga é antiga. Platão, o fundador de uma escola de filosofia chamada Academia, já desqualificava os sofistas, taxando-os de mercenários do saber, enquanto se dizia um mestre com selo de qualidade: discipulo de Sócrates, o filósofo autêntico que unia teoria e ética para a vida. Nos dias de hoje, o termo academia serve tanto para designar salões comerciais que vendem exercício físico e saúde fitness, como também centros universitários que produzem um tipo de cultura inacessível para o grande público.
Sem querer entrar nessa outra oposição entre corpo e mente, a verdade é que a Academia, dos intelecto culturistas, hipertrofia sua importância pelo afastamento daquilo que é cotidiano. Basta pensar no título de PhD, Philosophiæ Doctor, no Brasil chamado simplesmente de doutorado, que serve tanto para quem chegou no auge dos estudos de medicina, engenharia ou qualquer outra área, que, a grosso modo, seria o último degrau a ser alcançado depois de 20 anos na escola. Não obstante, ao menos no discurso, a Universidade se ressente, pois, gostaria que mais pessoas se interessassem pelo que ela diz. Deixemos de lado, por enquanto, este tipo de «filosofia» e vejamos o outro lado da história.
O Pop como estilo de vida se parece com a filosofia em seu início.
Desde sempre as pessoas buscam uma forma de estar mais conscientes no mundo e para isso se esforçam para progredir no autoconhecimento, no conhecimento das coisas ao seu redor e também daquilo que, por ventura, esteja além. A filosofia se desenvolve como um método para responder perguntas existenciais: Quem sou eu? O que devo fazer para ser feliz? E parece ser algo natural, quando as respostas começam a ficar longas e complexas demais, alguém dá um reset no sistema. Todo novo guru do momento, toda nova onda de autoajuda, é uma tentativa de voltar ao essencial das perguntas cruciais e dar soluções que possam ser imediatas e eficazes. Quanto mais pessoas adotam aquela filosofia de vida mais pop ela é. Hoje há uma cobrança incessante para que você conheça e cuide do seu corpo, conheça e controle a sua comida, conheça e se envolva no contexto em que vive. É preciso estar antenado e engajado.
E para que haja esta confluência entre saber e viver os conteúdos da cultura pop se transformaram em arautos de uma filosofia pop (e aqui estou usando a expressão de uma maneira bem específica: modo de pensar que permeia os produtos culturais relacionados à palavra pop). A música que você ouve, o podcast, a história em quadrinhos que você lê, o blog, etc. tudo isso cria um sistema de pensamento, ou não, que te ajuda a lidar com a vida. O problema é quando não reconhecemos que o Ioga, o Iogurte e o iOS não bastam para responder todas as questões que a existência nos coloca, do mesmo modo que, é complicado não admitir que todas essas coisas querem determinar nosso life style.
As vias espirituais são em certa medida uma Filosofia Pop.
Por outro lado, ao se falar em sentido da vida não se pode deixar de lado as religiões. Nas sociedades ditas ocidentais do século 21 nos acostumamos a colocar a religião em mais uma caixinha, ao lado de tantas outras, ou simplesmente descartá-la, quando na história vemos que, antes mesmo da filosofia existir eram as diversas espiritualidades que ofereciam códigos de conduta e explicações de porquê as coisas acontecem de um determinado jeito. Ao se desenvolver este grande edifício que é o pensamento ocidental a filosofia acadêmica, digamos assim, sempre se apresentou como a parte mais erudita, enquanto que a religião muitas vezes foi vista como uma filosofia popular, de segunda classe.
Talvez por reconhecer o potencial da filosofia como instrumental teórico, o cristianismo desde o início tentou utilizá-la para apresentar sua mensagem. E sobretudo por acreditar que as verdades que contradizem à Verdade não são verdades de fato. Deste modo, os pensadores cristãos sempre buscaram dialogar com todas as camadas da sociedade e com todas as culturas, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da filosofia. O que nos leva até mesmo a questionar: Quanto tempo a filosofia teria durado se não fosse a carona que pegou com o pensamento cristão?
Se a religião é um tipo de filosofia popular o contrário também pode ser verdadeiro: Às vezes um produto da cultura pop se transforma em religião. Basta pensar em estilos musicais como o punk, com seus lemas curtos e grossos, e até o funk ostentação, com seus clipes mais ricos que as letras, que fazem a cabeça de alguns jovens, ditando como eles devem se comportar. Sem falar nas ideologias, como a esquerda partidária, que pouco discute as ideias de Marx, mas gera ídolos, vende botons e camisetas como quem vende água (a direita brasileira parece estar querendo entrar neste mercado também…). E poderíamos terminar por aqui, com o imperativo do grande pensador contemporâneo, mas já falecido, Agenor de Miranda Araújo Neto, que proclamou que o impulso vital e a vontade de saber formam uma simbiose ideática tal qual o corpo e a alma, trocando em miúdos: Ideologia eu quero uma pra viver!
A Filosofia Acadêmica quer ser Pop.
Mas voltemos aos legítimos proprietários da filosofia, os acadêmicos. Afinal na nossa sociedade não se pode ser advogado sem passar no exame da OAB, nem fazer metanfetamina ser químico sem registro no CRQ. Quando falo de legitimidade não é de forma irônica (quando falo de propriedade, sim), o crivo das instituições ajuda os campos do saber a progredirem, também é assim para os fazedores de metafísicas e de metáforas. A lástima é quando esta produção tem um fim em si mesmo e não é compartilhada com o grande público. Que bom quando os acadêmicos ousam ultrapassar o abismo.
Me lembro que, quando a TV Cultura começou a transmitir o Café Filosófico eu já estava na graduação e pensei: Isso é genial! A televisão brasileira deveria ter mais programas como este! Passados uns anos o mesmo canal começou a trazer para seu telejornal noturno filósofos, cientistas políticos, historiadores para comentar as notícias e mais uma vez me empolguei: Por que isso demorou tanto para acontecer? Por que a programação aberta dá tanto espaço para o exótico, para o bizarro e nunca abre espaço para quem tem algo mais a dizer? (Notem, o questionamento só veio depois do fato consumado). Eu desconfio que a resposta seja: É porque a Academia sempre se levou a sério demais. E ainda, é porque falar ao grande público é estar exposto demais e correr o risco de ser criticado por todos os seus iguais.
O exemplo acima é só para afirmar: Tá pouco! Quanto mais livros de não ficção (mas de ficção também), consultórios de filosofia clínica, canais no Youtube trazendo conteúdo que faz pensar, séries que abordam dilemas éticos, quanto mais melhor. Claro uma grande quantidade significa a possibilidade de aparecer pseudofilósofos, contudo se o leque de escolhas também aumentar estaremos no lucro. Sinceramente, acho que a discussão sobre a profundidade da Filosofia Pop não se põe. Se Wittgenstein vivesse nos dias de hoje e publicasse seus aforismos via twitter será que classificaríamos sua filosofia como rasa por causa da ferramenta?
Filósofo Pop, uma vocação mal assumida.
Sabe-se que existe o professor de filosofia dos diversos níveis de ensino; o especialista que estudou grego para traduzir, direto do original, aquele pensador chave de toda história da filosofia clássica; existe ainda o filósofo escritor com fôlego para escrever tratados de mil páginas. E sabe-se também que existe aquele maluco que não estudou nada, que mistura tudo sem critério, que acaba atraindo uma meia dúzia, mas que não se sustenta. Destes somente o último e o primeiro parecem dialogar com gente de verdade, sendo que o filósofo de mentira era melhor que se calasse e o licenciado esforça-se para dar o seu melhor, mas é pouco ouvido porque seu conteúdo carrega a sina de ser matéria para prova, ou seja, altamente volátil na mente dos estudantes.
Mas e o divulgador? O provocador? Aquele que acena para as últimas obras traduzidas, que pode ser usado como exemplo pelo professor, aquele que leva ao grande público a obra-prima do filósofo-escritor, nem que seja para discordar? Onde está o filósofo pop que desmascara e envergonha o falso filósofo na praça pública? No Brasil ainda não há. A Filosofia Pop autêntica e salutar aconteceria nas rodas de bate-papo, ou círculos filosóficos, como queira, depois um livro lido ou de um podcast ouvido. Incentivada por alguém que não parecesse distante demais dos reles mortais. Seria síntese individual de cada um, mas amadurecida no diálogo entre amigos.
Muitos reclamam que o Brasil ainda não produziu um pensador autêntico, se produziu sua obra ainda não foi devidamente valorizada, muito menos criticada, no sentido de avançar em sua originalidade. Mas é claro, porque no Brasil o exercício do pensar ainda é para poucos. Enquanto a filosofia não entrar na moda, enquanto milhares de rapazes e moças não sonharem em ser iguais ou superiores aos intelectuais que lhes inspiram, nossa contribuição não será levada em consideração. E, no contexto deste site, espero que este texto sirva de estímulo para que cresça também uma Teologia Pop.