Explicar o conceito de mito é difícil. Quando falamos sobre mitos já carregamos preconceitos como “o mito é mentira”, ou “mitos são coisas falsas”. Temos o termo popular para descrever as inverdades que são propagadas pelas redes sociais e grupos de Whatsapp e Telegram, temos ainda o termo “mito” expressado para outros significados, mas aqui eu gostaria de me debruçar sobre uma outra perspectiva sobre o mito.
O fato é que alguns livros da Bíblia, em especial, Gênesis 1-11, são inegavelmente carregados de linguagem mitológica e arquetípica, como foi demonstrado no Btcast 261. Os elementos mitológicos (como a criação do mundo, árvores sagradas, dilúvios e a criação do homem), são encontrados em diversas outras histórias dos povos antigos, assumindo formas de arquétipos:
- Yggdrasil é a árvore cósmica da mitologia nórdica
- A criação do homem é contada na história de Prometeu
- O dilúvio possui um relato semelhante na Epopéia de Gilgamesh,
- E a criação do mundo em Gênesis possui vagas semelhanças com a criação do mundo babilônico no Enuma Elish, (para citar alguns exemplos).
A mitologia, assim como o método parabólico de ensino nos tempos de Jesus, era uma forma bastante popular de contação de histórias e transmissão de informações e conhecimentos. Especificamente as narrativas, “tiveram a intenção de dar sentido e direção a um determinado povo no presente, e […] as narrativas bíblicas não são diferentes de outras histórias” [1], como afirma Gordon Fee.
Mas e a definição de que o mito é uma mentira?
Sinceramente, não sei como surgiu o conceito pejorativo de “mito como uma mentira”, mas para alívio do leitor, estarei longe de definir ele assim, ou como uma historinha contada por pessoas desprovidas do conhecimento científico. Pelo contrário: minha apresentação sobre o mito neste texto será de uma verdade.
Como disse o mitólogo Mircea Eliade, “o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidades” [2]. O mito é verdadeiro porque ele conta uma história de origem, de como as coisas foram criadas até termos a realidade que conhecemos hoje. De fato, sabemos que a queda é real porque existe o pecado hoje, sabemos que Abraão e os demais patriarcas existiram porque o povo judeu existe, bem como o restante dos seus elementos históricos. Grosso modo, quando nós também contamos histórias dos nossos antepassados e dos nossos parentes, estamos celebrando o mito dos antepassados. Perceba que a questão da precisão factual de forma alguma altera esta verdade. Compreender os mitos significa viajar através do tempo, adentrar pelo fantástico nas páginas e saber como as coisas são e como elas se tornaram o que são. Os mitos bíblicos contam a história de um povo, o povo santo de Deus, nos conduz pelos caminhos da criação, queda, redenção e justiça, nos conduz à Verdade.
Mas então como eu saberei que os mitos bíblicos falam a verdade?
Pelo simples fato que expliquei anteriormente, devido à verdade que os relatos bíblicos contém em relação ao que os outros mitos não possuem.
- O relato de Ea, no Enuma Elish, criando o homem com sangue e ossos, parece ser semelhante à Gn 2:23, mas não expressa a verdade que existe hoje: a humanidade como administradora responsável de toda a criação, criada à imagem e semelhança do Criador. O que ela expressa é uma definição de uma humanidade reduzida tão somente à escravidão dos deuses [3]
- O mito de Pandora, que liberou os males na humanidade, é visto como um castigo divino devido à desobediência dos homens aos deuses. Mas o que falta ao mito de Pandora é que a destruição da humanidade é causada como consequência da sua própria natureza em rebeldia. O Deus bíblico não é o culpado das aflições humanas. Os deuses gregos, nesse caso, são.
Essas, dentre outras, são as pequenas sutilezas entre os mitos que no fim fazem uma grande diferença: nos mitos bíblicos temos a Verdade, revelada a nós pela Fé. Os outros mitos podem mostrar realidades, mas em comparação bíblica, eles apenas contém verdades.
Mas então, Gênesis é um mito? Com as devidas explicações dadas, com certeza, Gênesis é um mito (especialmente Gn 1-11). Sobre a literalidade e exatidão dos fatos relatados, não me atreverei a afirmar categoricamente sobre isso: me inclino para o lado da não literalidade, mas compreendo que este assunto na teologia ainda está longe de ter uma conclusão. Para saber mais, há um Btcast inteiro sobre a literalidade de Gênesis que vale a pena ouvir. O que posso afirmar é que de acordo com o mito, a Bíblia é riquíssima em verdade pois ela descreve com precisão a criação, corrupção e restauração da natureza humana. Acredito que nenhum crente se atreverá a se opor a isto.
[alert type=”danger”]Que tal aprofundar a discussão deste texto ouvindo o BTCast 261 – Adão tinha umbigo?Clique aqui![/alert]
Texto por: Marcelo Nakasse
[1] FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia prático para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011.
[2] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2013.
[3] A versão traduzida do Enuma Elish pode ser conferida em inglês aqui: https://goo.gl/rDLjbK. Existe também uma versão portuguesa traduzida da versão inglesa aqui: https://goo.gl/AHqkdT