Há uma frase muito famosa, presente em uma das cartas de C. S. Lewis que diz assim: “Eu não fui para religião para me fazer feliz. Eu sempre soube que uma garrafa de vinho do porto faria isso. Se você quer uma religião para fazer você se sentir realmente confortável, certamente eu não recomendo o Cristianismo.“
Apesar do mesmo Lewis descrever o cristianismo como uma casa (uma figura até certo ponto acolhedora e confortável) ele não se furta de apresentar a realidade e os obstáculos impostos por um estilo de vida que, em última análise, estará sempre na contramão do mundo.
De fato podemos dizer que a proposta do cristianismo tem muito pouco a ver com conforto. Ao invés disso, se analisarmos o discurso de Jesus, ainda que superficialmente, encontraremos entraves muito claros (e muito duros). “Quem quiser me seguir, tome sua cruz dia após dia”, “Ame os seus inimigos”, “Não fuja de quem te pede emprestado”, e por aí vai.
Vivemos dias difíceis, eu sei. Mas isso não deveria ser pretexto para almejarmos por um “evangelho confortável” (se é que isso é possível). Nesta conjuntura é bastante pertinente olharmos para as palavras de Jesus, descritas no capítulo 6 do evangelho de Lucas, e compará-las às nossas aspirações e ao nosso estilo de vida.
“Então Jesus se voltou para seus discípulos e disse: Felizes são vocês, pobres, pois o reino de Deus lhes pertence. Felizes são vocês que agora estão famintos, pois serão saciados. Felizes são vocês que agora choram, pois no devido tempo rirão. Felizes são vocês quando os odiarem e os excluírem, quando zombarem de vocês e os caluniarem como se fossem maus porque seguem o Filho do Homem.
Quando isso acontecer, alegrem-se e exultem, porque uma grande recompensa os espera no céu. E lembrem-se de que os antepassados deles trataram os profetas da mesma forma.
Que aflição espera vocês, ricos, pois já receberam sua consolação! Que aflição espera vocês que agora têm fartura, pois um terrível tempo de fome os espera! Que aflição espera vocês que agora riem, pois em breve seu riso se transformará em lamento e tristeza! Que aflição espera vocês que são elogiados por todos, pois os antepassados deles também elogiaram falsos profetas!” – Lucas 6:20-26.
Se todo meu esforço físico e mental, todo o tempo empregado, todo o “sacrifício” visa me colocar numa condição de conforto, riqueza ou notoriedade, talvez eu esteja empenhado em me enquadrar no segundo grupo. O que me coloca inevitavelmente em cheque com as convicções que eu professo.
A grande pergunta que eu me faço diante deste texto é: O que eu tô fazendo da minha vida?
Maranata!
O que numa primeira vista pode soar como uma mera ode à miséria, numa leitura um pouco mais atenta nos revela a grandeza proporcionada por uma vida sob constante tensão.
A expectativa escatológica promete felicidade completa a todos aqueles que vivem debaixo das agruras da vida cotidiana. Aos pobres, o Reino. Aos famintos, a fartura. Aos que choram, o riso. E aos perseguidos, o galardão. Esta perspectiva, acima de tudo, oferece esperança em uma justiça vindoura. Celestial.
Para o cristão, a renúncia é inegavelmente o lugar de pressão, mas também o lugar de mais alta honra. Jesus disse mais do que claramente, e isso bem antes de sua crucificação: “Quem se recusa a tomar sua cruz e me seguir não é digno de mim.” – Mateus 10:38.
Afinal de contas, nós somos conhecidos como “o povo da cruz”.
Mas ainda somos chamados para a injúria, conforme 1 Pedro 2:21. Desafiados nos esvaziar, assim como o próprio Jesus, conforme Filipenses 2:5. E a morrer pelos nossos irmãos, de acordo com 1 João 3:16.
Há tantos outros textos que apontam para esta verdade profunda contida na renúncia de nossa vontade que este artigo não os comportaria. O ponto é que somos súditos de um rei que nos chama ao sacrifício, a uma vida eterna, vivendo no meio de pessoas que não erguem os olhos para o nível acima de seus umbigos. Somos estrangeiros vivendo em território inimigo. E isto naturalmente nos causa algum constrangimento. Não podemos nos abster desta pressão.
Satisfação
Mas para além deste olhar transcendente há uma realidade bem mais superficial, e nem por isso menos poderosa: Aos mais desafortunados é reservada a bênção de aprender a contentar-se.
Paulo escreveu sobre isto em sua carta aos Filipenses, também conhecida como a epístola da alegria.
“Sei viver na necessidade e também na fartura. Aprendi o segredo de viver em qualquer situação, de estômago cheio ou vazio, com pouco ou muito. Posso todas as coisas por meio de Cristo, que me dá forças.” – Filipenses 4:12-13
Poderia apostar que Paulo não aprendeu a “contentar-se em qualquer situação” desfrutando de mordomias. Não é assim que aprendemos a nos contentar. Mas sim vivenciando as mazelas, experimentando dor e sofrimento. O autor de Hebreus chega a afirmar que o próprio Jesus aprendeu a submissão através do sofrimento (Hebreus 5:8).
Então, para além de uma esperança de recompensa celestial, a rigidez da vida nos torna seres humanos mais gratos em tudo. E, ainda que não sejamos aptos a observarmos esta realidade, estando nós pelo lado de dentro da opressão do mundo presente, se investirmos tempo com Deus poderemos receber dicas preciosas – e quem sabe até vislumbres rápidos – da obra que ele começou (e irá completar) em nós.
E o que dizer dos ricos, dos fartos, dos que riem e dos benquistos?
A estes resta uma má notícia: O Reino de Deus é um reino de equidade.
Equidade é quando as oportunidades são equalizadas ao ponto de não haver mais distinção entre os status das pessoas. É quando os menos favorecidos recebem bônus, e os mais favorecidos, ônus. Isso significa que nele não há espaço para privilégios. No Reino de Deus todas as diferenças são neutralizadas a fim de que cada filho de Deus seja igualmente bem-aventurado. Por conta disso, seres humanos acostumados a regalias e aos holofotes, fatalmente não se sentirão mais assim tão especiais neste Reino.
O contrário da equidade é a iniquidade. E aqueles que a praticam, a Bíblia chama de iníquos. Viver como eles pode parecer bastante convidativo, mas à luz das escrituras não parece uma boa ideia. Via de regra este estilo de vida não nos prepara para sermos gratos, e a gratidão parece ser a principal porta de entrada para a presença de Deus (Salmo 100:4). A mera possibilidade de adentrar à Sua presença solene já configura a maior das dádivas, mas os iníquos não são capazes de desfrutar dessa bênção.
Santidade
Não foi à toa que tantos personagens na Bíblia, ao se depararem com a manifestação de Deus, prostraram seu rosto em terra e clamaram por misericórdia. Talvez a maior pressão que sofremos na caminhada cristã não esteja nem na transcendência da expectativa escatológica, nem na imanência brutal da iniquidade humana, mas na consciência do nosso pecado.
Somos seres quebrados, diante de um Deus inteiro.
É fato que todo e qualquer esforço de santidade humana é inócuo frente a um Deus perfeito. Porém, para aqueles que compreenderam minimamente o mistério da graça salvadora de Jesus Cristo, seria inconcebível desconsiderar tão grande salvação, reagindo com indiferença ao sacrifício vicário do Filho unigênito de Deus.
Paulo descreve esta tensão logo no primeiro capítulo de sua carta aos Colossenses.
Segundo ele, este “mistério oculto há muitas gerações e que hoje foi manifesto aos santos” (Colossenses 1:26) é eficiente (v. 29)para promover a vida de Cristo em nós (v. 27), e nos apresentar diante de Deus como ser humano perfeito (v. 28).
A operação deste poder sobrenatural produz invariavelmente em nós o anseio pelo caráter de Cristo. Daí o costume que temos de chamar de “cristãos” todos aqueles que nasceram de novo em Cristo.
Etimologicamente a palavra “cristão” não se aplica a quem simplesmente “crê” em Jesus, mas a quem se identifica com ele. Tiago tratou desta questão prática de maneira inflexível: “A fé sem obras é uma fé morta” (Tiago 2:17). Uma fé viva produz no crente as mesmas obras de Cristo.
Logo, cristão é quem faz as obras que ele faz, ama o que ele ama e odeia o que ele odeia. Os primeiros discípulos foram chamados de “cristãos” quando os não-crentes perceberam neles as mesmas características, o mesmo comportamento e a mesma disposição do mestre galileu, morto numa cruz.
Caminhar como cristão envolve então a derradeira e maior pressão de todas: A consciência de que somos a luz do mundo. Somos o corpo de Cristo. Embaixadores do Seu Reino. Chamados a andar nas boas obras que Ele preparou de antemão. Assim como um soldado que não se permite perder tempo com coisas banais (2 Timóteo 2:4) temos em nossas mãos uma tarefa patente. E um dia seremos cobrados do status desta missão diante de um Deus justo e íntegro.
Na música Asleep in the Light (que dá nome a este artigo), Keith Green nos chama a atenção para o fato de que o lugar de conforto não é o ambiente natural da igreja. Ele compara esta apatia dos santos com a de um salvador que repousa anestesiado em um ambiente iluminado, enquanto o mundo permanece adormecido nas trevas, sem ninguém para despertá-lo.
E aí? Sentiu o desconforto?
Se a resposta for “sim”, talvez seja hora de cair da cama!