Cada noite é uma surpresa! Vidas se cruzam, embaraçadas em buscas que parecem instintivas. Um novo momento, um novo lance, novas relações com outro algo ou alguém. Cada noite (ou dia) de quem vive a odisseia da busca pelo suprimento é uma vida em si. Suprimento de carências, de débitos, de subtrações, do que me foi roubado ou do que nunca tive. O importante é encontrar algo que me baste. Ou, na maioria das vezes, que não apenas me baste, mas que me abasteça. A droga é assim! Só que existe uma parte droga da droga. Uma parte que nunca aparece, pois, como uma maçã encerada, nos seduz e nos faz abocanhar a fruta como se não houvesse a parte podre virada para o lado oposto.
Esquecemos que cada carência não é apenas uma carência, mas um fruto maduro de uma árvore de escolhas, nossas ou não. Escolhas ruins, escolhas rápidas, escolhas humanas. O ser humano é muito rápido. E essa rapidez em escolher abocanhar a maçã encerada é a parte droga da droga. A parte que nos cega para a integralidade de tudo que gira em torno das nossas escolhas. Que nos cega para viver a realidade de um universo paralelo que criamos para suprir nossas demandas.
A droga, de um ponto de vista mercadológico é a maior invenção de todos os tempos. A droga é uma invenção? Claro que não! O uso da droga é uma invenção. E diga-se de passagem, deu muito certo. Do ponto de vista de quem faz o discurso rápido e das respostas rápidas para os problemas da vida humana. A droga é a solução para acabar com todos os problemas. Se não fosse é claro, a parte droga da droga. Se não fosse o fato de simplesmente trocar um problema pelo outro. De trocar uma carência por outra. De trocar o sentimento de perda pela falsa sensação de ganho.
Uma sociedade sensual, guiada e constituída por aquilo que sente, está sempre à procura de sentir algo novo. Está sempre procurando abastecer sua carência de sentido através de um sentimento. A vida sem sentido passa a ser uma vida de sentido sentimental. A parte droga da droga, transforma tudo em sentimento. Tudo passa a ser sentido e nada passa a ter sentido. Tudo passa pelo filtro do vale ou não vale a pena sentir. Pela aparência, até que vale. Tá com uma cara de que vai resolver meu problemas isso aqui, hein? A parte droga da droga, nos leva de volta ao momento em que caímos, tentando nos bastar. E novamente escolhemos cair. Resolvemos que conseguiremos nos suprir. Resolvemos que conseguiremos companhia para mais uma noite e amanhã veremos o que acontece. Pagamos para ver e acabamos não vendo, apenas sentimos.
A parte droga da droga, depois de uma sessão de chapação, nos coloca na frente do espelho e o que vemos não é o nosso reflexo mas sim um milhão de corpos com alma caminhando pela terra e nos encarando, como se estivéssemos banhados no sangue da cena do crime. Você não se vê mais. Você não sabe mais quem você é. A única coisa que você sabe sobre você mesmo é que adorou cada sensação de morder aquela maçã encerada, linda e vermelha. A droga da droga é exatamente isso. Quando você não sabe como foi parar ali, mas tem certeza que a viagem valeu a pena. E a consequência de não saber como foi parar ali é não saber por onde ir, caso queira voltar pelo mesmo caminho.
A parte droga da droga, é não ter mais pra onde voltar. E todos acabam mordendo essa maçã encerada. Todos acabam curiosos quando olham pra trás e não sabem mais nada sobre si.
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