Lutero era antissemita?

Há uma porção de sites propagandeando revelar a verdade última sobre a relação de Martinho Lutero com a causa nazista. Há os que querem estabelecer relação direta entre Adolf Hitler e Lutero. Fato é que a grande parte dos argumentos usa uma premissa muito simplista. Se a afirmação “Lutero era antissemita” for verdade e também […]



22 de novembro de 2011 Alex Reflexões
Há uma porção de sites propagandeando revelar a verdade última sobre a relação de Martinho Lutero com a causa nazista. Há os que querem estabelecer relação direta entre Adolf Hitler e Lutero. Fato é que a grande parte dos argumentos usa uma premissa muito simplista. Se a afirmação “Lutero era antissemita” for verdade e também “Hitler citou Lutero” for verdade, então o Holocausto deveria ser culpa de Lutero. Problema é que um acontecimento histórico é provocado por uma série de causas e motivações e não pela fala de apenas um indivíduo. Com isso não quero tirar a culpa de Lutero sobre o fato de ele ter odiado os judeus, antes desmontar o argumento de que atrocidades modernas tem relação direta com o escrito de um teólogo do século XVI.

Um começo mais positivo

Há que se dizer que o Lutero mais jovem tinha uma posição bem mais favorável aos judeus do que se diz por aí:

“Nosso grande pecado e pesada iniqüidade,  pregaram à cruz Jesus, o verdadeiro filho de Deus. Por isso, não devemos como inimigos recriminar a ti, pobre Judas, nem a ‘multidão de judeus; a culpa é inteiramente nossa.

[cit. Altmann, Walter: Lutero – Defensor dos judeus ou anti-semita? cf. Luther, Erlanger Ausgabe 56, 359]

No escrito “Que Jesus Cristo nasceu judeu” (1523), o reformador expos a respeito da importância de expor a verdade do Evangelho ao povo judeu de forma que o reconheçam como o Messias e retornem a fé dos pais e profetas.

Os judeus, porém, são do sangue de Cristo; nós somos cunhados e estrangeiros, eles são amigos de sangue, primos e irmãos de nosso Senhor. Por issò, se pudéssemos nos gloriar no sangue e na carne, os judeus estariam mais próximos de Cristo do que nós.

[Cit. Altmann, Walter, op.cit., cf. Luther, WA 11, 314-316]

Em muitos assuntos a posição de Lutero no final da vida foi bem mais dura e incisiva do que nos tradicionais escritos reformatórios da década de 20-30, muito provalvemente Lutero sofria com crises depressivas e saúde debilitada. O reformador sempre esteve no centro dos embates entre oponentes cujo poder político e econômico suplantavam em muito o de um simples professor de Bíblia.

Os textos mais duros

No final da vida Lutero escreveu 3 textos sobre os judeus. Em primeiro lugar ele ataca a exegese rabínica. Lembrando que Lutero era professor de Bíblia, e sempre expôs a Escritura com o princípio “do que promove a Cristo”, além de interpretar o Antigo Testamento sob a ótica trinitária. Os judeus, obviamente, não teriam este tipo de leitura e Lutero se opõe a sua maneira de fazer exegese. O que Lutero desejou num primeiro momento era mostrar aos companheiros evangélicos que não era saudável utilizar a exegese rabínica, por causa dos seus pressupostos. Lutero também se baseou em grande medida na opinião comum dos teólogos cristão até aquele momento, de que os judeus seriam culpados pela morte de Cristo e que por isso o sofrimento deles era justo. Além disto também reutilizou algumas das mais cruéis acusações, comuns entre a população da época, contra os judeus, como de que os judeus eram apenas interesseiros, agiotas sem coração. Ou seja, Lutero amalgamou críticas teológicas próprias, heranças teológicas irrefletidas e preconceito ao formular textos explosivos como este:

Primeiro: Que se incendeiem suas sinagogas, e, quem puder, jogue enxofre e piche. E quem pudesse também lançar fogo infernal, seria igualmente bom.

Segundo: Que se lhes tomem todos os seus livros — livros de oração, escri­ tos talmúdicos, também toda a Bíblia —, sem deixar uma folha sequer, e que sejam preservados para aqueles que se converterem. […]

Terceiro: Que lhes seja proibido, sob pena de perderem o corpo e a vida, de louvar a Deus, dar- lhe graças, orar, ensinar publicamente entre nós e em nosso país.

[Se tudo isso se mostrar ineficaz, há ainda uma sugestão adicional:] Já que devemos permanecer puros da blasfêmia dos judeus, não participando dela, devemos estar separados, devendo eles ser banidos de nosso território.

[cit. Altmann, Walter, op. cit., cf. Luther, WA 53, 417ss]

Como se vê não é possível desculpar Lutero pelo que escreveu. Ele foi, nos termos de hoje, anti-semita. Há pesquisadores que dizem que o termo é anacrônico e que deveríamos falar de anti-judaico, uma vez que o ataque era contra a religião e não contra o povo, pois Lutero aceitava a integração de judeus que se convertessem por vontade própria.

Não para desculpar ou justificar, mas para compreender é importante lembrar que a Europa daquele período era extremamente anti-semita e continuou sendo até a Segunda Guerra Mundial. Embora há quem ligue diretamente o ser evangélico ao ser nazista, num recurso à Lutero e à sua eleição por protestantes, isto se mostra falso em sua origem, uma vez que um dos maiores expurgos de judeus aconteceu em 1519 em Regensburg uma cidade católica. Mesmo em Nuremberg, um dos principais centros da fé luterana, havia por parte do pastor local, Andreas Osiander, uma visão muito positiva do judaísmo. O próprio Osiander fora aluno de rabinos, lia, estudava e apreciava muito a exegese dos rabinos, tendo inclusive se manifestado por carta contra Lutero e seus escritos. A carta porém nunca chegou a Lutero, pois Melanchton abafou as criticas. Com

Retenha só o que é bom

O que se pode dizer desta  grandes controvérsia é que Lutero não media as palavras quando argumentava. [3] Ao mesmo tempo em que apresentava sólida argumentação teológica, exegética e histórica, também se utilizava de fraseologia, figuras e exemplos do cotidiano, muitos dos quais eram preconceituosos e excessivamente duros contra os acusadores. Há que se lembrar por exemplo das manias de Lutero de apelidar opositores. Por exemplo, o grande humanista Erasmo de Roterdã havia escrito a “Diatribe sive colatio” e dedicado a obra à Lutero. Lutero agradece, e escreve “De Servo Arbitrio” (200 páginas!) contra Erasmo, onde o chama de “sapo coaxante”.  Não podemos endossar todas as formas de Lutero escrever, ainda que a base de sua teologia seja boa e bem fundamentada. Fica a dica: “julgai todas as coisas, retende o que é bom” (1Ts 5.21).
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[3] Excelente artigo sobre as polêmicas de Lutero encontra-se em EDWARDS JR, Mark U. Luther’s polemical controversies. In MCKIN, Donald. The Cambridge Companion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.