Clive em: Na roda dos escarnecidos

Carlos caminha decidido patio a dentro da igreja. Ele está certo que a melhor decisão neste momento é participar de um grupo de mútua ajuda. Ele já fez um tratamento em clínica, já foi aconselhado por pastores e terapeutas especializados, ele quer agora, retomar sua vida. E isto significa se reinserir socialmente, o que nem […]



6 de setembro de 2013 Alex BTContos

Carlos caminha decidido patio a dentro da igreja. Ele está certo que a melhor decisão neste momento é participar de um grupo de mútua ajuda. Ele já fez um tratamento em clínica, já foi aconselhado por pastores e terapeutas especializados, ele quer agora, retomar sua vida. E isto significa se reinserir socialmente, o que nem sempre é fácil. Clive o recebe para esta primeira experiência em um grupo para dependentes e familiares.

– Carlos! Boa-noite, que bom te ver aqui novamente! – Cumprimentei com grande alegria.

– Oi Clive, boa-noite. To decidido, aqui é o meu lugar, mesm

o que eu ainda não saiba como vai ser. – Disse ele num misto de empolgação e nervosismo.

– Então vamos lá? Vem comigo que o pessoal tá lá dentro nos esperando. – Seguimos juntos para a sala onde os demais já se encontravam. Procuramos um lugar na roda e cumprimentamos os demais de longe.

A reunião começa.

– Boa-noite, eu sou Clive, e desejo que todos sintam-se bem-vindos em nosso grupo. Especialmente quero cumprimentar os visitantes desta noite. Então, como temos amigos e amigas novas em nosso meio, será importante falar um pouco sobre como funciona nosso grupo. Ricardo, você poderia contar um pouco sobre nossa dinâmica?

–  Sim, Clive! Olá pessoal, eu sou o Ricardo. Nosso grupo é cristão, por isto sempre começamos com oração e leitura da Bíblia, mas não pregamos religião, nem pertencimento a uma igreja. Nosso foco é ajudar as pessoas que lutam contra a dependência química,e também as suas famílias. Prezamos pelo anonimato,

isto é, não vamos sair porta a fora falando quem participa, nem expondo suas histórias, isto quebra a confiança de um no outro, o que é fundamental aqui dentro. Todos tem o direito de falar, mas ninguém é obrigado a falar. Ah, também não há hierarquia, nem títulos aqui, por isso nos chamamos pelo primeiro nome, ou se preferirem pelo seu apelido.

– Muito obrigado Ricardo. Como já foi dito, começaremos então com uma leitura da Bíblia, e uma oração. Marli, você poderia ler o primeiro verso do Salmo 1?

– Um momento Clive. – Ela folheia sua Bíblia, encontra o texto, e prossegue – “BEM-AVENTURADO o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.” Até aqui o versículo.

– Obrigado Marli. Quem de você veio aqui buscar um conselho?

– Eu Clive, preciso muito de ajuda com meu filho. – disse uma mãe, que veio buscar ajuda – Ele é um problema sério pra mim, deu muito ouvidos a esses aí que a moça leu, esse pessoal que fala besteira e manda fumar droga. Ah se meu filho fosse como esse homem da Bíblia, seria tão bom!

– É possivel Marta. Mas quem são este impios, pecadores e escarnecedores que dão conselhos errados?

– São os caras. Primeiro dizem pra gente que é só pra curtir um barato, viajar. Parecem o máximo no começo. Se eu soubesse onde ia parar nunca tinha começado, – relatou Yuri com pesar – mas entrei e to aí tentando pular fora. É difícil.

– Alguém percebeu que o versículo nos mostra um processo, uma caminhada deste o primeiro contato com as drogas até a dependência dela?

– É verdade Clive, não tinha sacado isso ainda. – disse Carlos empolgado – Andar, deter-se, sentar-se! É bem assim mesmo, primeiro a gente anda com os caras, a mãe dizia: “não quero mais ver você andando com esses caras”, e eu dizia “nada a ver mãe, só to andando com eles, não faço o que eles fazem, eu sei o que é bom pra mim!”.

– Eu dizia isso pro meu filho sempre, mas não ouvia – dogmatizou Marta.

– Marta, minha mãe falava bem desse jeito como você disse. Acho que nunca dei bola pra ela porque parecia que ela queria me controlar, mandar, e dizer o que é certo e errado, ao invés de me ouvir e me entender. Por isso a gente acaba procurando quem nos ouve, mesmo que os caras sejam vida loca.

– Carlos, e depois de você andar, como foi que você se deteu, isto é, conte como foi sua experiencia de dar ouvidos, de aceitar o conselho do grupo que você frequentava.

– Então, depois muitas festas, raves, baladas em que todo mundo curtia todas, viajavam altas, e eu ali na minha, resolvi experimentar. Ninguém me obrigou, na real nem me ofereceram.

– Ah não, eu tenho certeza que eles sempre oferecem, e de graça! – mais uma vez interrompeu Marta.

– Pode até ser que oferecem Marta, mas pra mim, e pra muitos que conheci não foi assim. Simplesmente fiquei interessado no efeito maluco que produzia. Via todo mundo curtindo e pensei “é isso que eu quero pra mim”. Só isso. Aí comecei com a maconha. Apesar de que é meio ruim direto na maconha, aí a gente acaba fumando um cigarro branco junto, porque a maconha é meio ruim de tragar, tá ligado? No álcool nunca fui chegado, meu pai foi alcoólatra, graças a Deus tá livre hoje, acho que por isso nunca me interessei em cerveja e essa coisas, sabe?

– E depois Carlos, quando você percebeu que esta sentado junto com eles, isto é participando de todas, talvez já como um dependente da droga?

– Bom, perceber só mesmo como te falei da última vez, quando levei uma prensa da minha mulher e vi que não tinha mais saida, ou abria o jogo e pulava fora, ou arriscava perder o que tinha de mais importante naquele momento, que era minha mulher. Mas hoje vejo, que embarquei de vez na dependência quando a droga assumiu o centro da minha vida. Aí dá pra dizer, sentei de vez com os caras e me tornei um deles.

– Se quiser, conte um pouco mais – instiguei Carlos a relatar mais um pouco.

– Primeiro você usa só no final de semana, sexta, sábado, daí no domingo você fica em casa pra descansar porque na segunda tem trampo. Depois você amplia o final de semana pra quinta, as vezes falta droga e você entra na pira dos caras por causa da fissura e chega a vira noite usando. Isso foi quando eu já tava usando pó. Passava dois, três dias acordado. Só me dava conta do que tinha acontecido quando acordava na segunda quebrado e lembrando que já tava atrasado pro serviço. Logo também já tinha mais amigos, só os caras que usavam junto, mas esses vem e vão. Aí com o tempo você perde a vontade pro trabalho, só pensa na droga mesmo. E eu só não larguei o serviço porque sou sozinho e não ia ter como arranjar grana pra bancar o pó, tá ligado que é caro né. Crack nunca quis, tive medo.

– E como as pessoas reagem ou reagiram quando souberam da sua situação como dependente?

– Puts! É complicado, já perdi até emprego por causa disso, né. Tem gente que fala “tu é vagabundo mesmo”, outros dizem “coitado dele, caiu na lábia do traficante”. Na minha família só falavam que eu só podia pisar lá de novo quando tivesse limpo. Acham que eu sou um bandido um algo assim.

– Você se sente marginalizado? Alguém que não tem valor pra sociedade? Alguém que atrapalha?

– As vezes sim, enquanto ninguém sabe é normal. Mas quando descobrem que sou “drogado”, aí tudo muda. Pessoal olha com desconfiança, como seu eu fosse roubar algo pra comprar droga, como seu eu fosse perigoso, violento, ou algo assim. – Conta Carlos com pesar em sua voz.

– Então dá pra dizer que apesar de você ter feito parte da roda dos escarnecedores, você também foi escarnecido por aqueles que se julgavam os certos e bons?

– Sim, dá pra dizer isso. Eu sei que entrei nessa por mim mesmo, foi minha decisão. Eu to ligado que não posso botar a culpa em ninguém. Mas pra sair parece que tem mais gente querendo te por pra baixo do que os que tão afim de te ajudar.

– Então o versículo do Salmo 1 podia ser usado como um alerta pra quem ainda flerta com a droga, ou como prevenção. Mas pra quem já está na dependência ele mostra outra verdade: o escarnecedor, isto é, o zombador, o que acha que nada de ruim vai acontecer com ele por causa do droga, acaba se tornando uma vítima da droga. E os que estão limpos, acabam por puro preconceito e falta de informação ridicularizando, diminuindo e excluindo o dependente. Desta forma, dificultam o tratamento e a restauração de vidas.

– Puxa Clive, nunca pensei nisso – disse Marta – vou ter que repensar na forma como tenho tratado meu filho. Muito obrigado pelas palavras.

– De nada Marta, quando quiser nos contar sua história, ouviremos com alegria.

– Quem sabe numa próxima, ainda preciso de um tempo.

– Quando achar que é a hora, estaremos aqui. Aliás, isto vale pra todos nós. Dependentes de psico-ativos ou não, somos também pessoas que erram, pecam, deslizam, e tem seus vícios. Muitos de nós foram conhecidos como os escarnecedores, e ainda há quem assim nos chame. A igreja, porém, é o lugar para quem se reconhece como tal e busca a mudança. Aqui é o nosso lugar de cura e restauração. Quando digo cura, penso em relacionamentos restaurados, integridade como pessoa, caráter, auto-estima, alegria de viver, perdão dos pecados, uma vida guiada por Deus.

– Nossa Clive, um verso tão pequeno e com tanto conteúdo! Nossa reunião hoje me deu novo ânimo! – Disse Carlos empolgado e com um sorriso no rosto.

– Me alegro Carlos! Gostaria de te ouvir mais, mas hoje infelizmente temos que encerrar. Vamos ainda orar?

Segui-se um momento de oração pela vida e famílias dos participantes. Fui pra casa feliz, por mais um momento cheio de impulsos pra minha vida, por ter trazido um pouco de alívio pra consciências pesadas, por ter esclarecido o que vivia na sua ignorância. Amo a igreja por isto, é um hospital onde um é médico pro outro, e todos são igualmente doentes, uns reconhecem, outros ainda não.